terça-feira, 31 de maio de 2011

Debora Noal - Psicologa (Médicos Sem Fronteiras)

 Reprodução


No dia 16 de abril, a gaúcha Debora Noal botou nas costas uma mochila que nunca passa dos 10 quilos. Dentro dela, uma lanterna de cabeça, como as que os mineiros usam, adaptadores de todos os tipos para computador, um gel para lavar as mãos, lenços umedecidos para o banho, um kit de colher, garfo e faca, um canivete, duas camisetas da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), duas calças jeans, um lenço cor-de-rosa para usar na cabeça em regiões muçulmanas, uma jaqueta térmica, um par de havaianas e outro de tênis, um laptop e um dicionário de português/francês/inglês. Levou ainda uma velha boneca da Magali, personagem do criador Maurício de Sousa, que troca de cara (feliz, triste, zangada, etc), para ajudá-la no atendimento a crianças nos lugares mais remotos e perigosos do mundo. Aos 30 anos, a psicóloga Debora partiu para sua décima missão na MSF. Depois de uma preparação de alguns dias em Genebra, hoje ela está no Quirguistão.

Em 2010 houve um conflito étnico entre uzbeques e quirguizes no país da Ásia Central, ex-integrante da antiga União Soviética. Muitos morreram e muitos foram presos. Debora passará de quatro a seis meses trabalhando nas prisões do “Quirgui”, como ela diz. Além de duas missões no Brasil, desde 2008 ela atua em países que a maioria de nós não sabe pronunciar o nome nem onde fica – ou apenas conhece pelo noticiário internacional. Começou pelo Haiti (três vezes, incluindo a República Dominicana), Guiné-Conacri, República Democrática do Congo (duas vezes), e recém voltara de um campo de refugiados do conflito na Líbia quando foi recrutada para o Quirguistão. Sem saber que seria despachada para um país frio, tinha acabado de raspar a cabeça para mudar de estilo.

Dias antes de sua partida, entrevistei Debora por três horas em seu pequeno apartamento em Aracaju, capital de Sergipe, cidade tranquila e praiana que ela escolheu para voltar depois de cada partida. É um apartamento despojado e muito colorido, povoado por lagartixas e girafas artesanais que ganha de presente. Perguntei a ela a razão de tantas cores. E Debora me explicou que as cores são a forma encontrada por ela para representar a variedade de cheiros que seu contato com um mundo diverso de humanidades lhe proporciona – um universo olfativo impossível de definir em palavras. Era desse mundo muito mais rico – que Debora alcança e nós não – que eu queria saber.

Nascida e criada na gaúcha Santa Maria, Debora cursou Psicologia em Santa Cruz do Sul porque buscava uma faculdade comunitária. Depois, trabalhou no Fórum Social Mundial de 2005 e, quando o evento terminou, tentou pegar uma carona para Manaus. Não conseguiu. Acabou em Recife, onde instalou CAPs (Centro de Atenção Psicossocial) em duas cidades do interior pernambucano. Saiu de lá para fazer residência em Saúde da Família em Sobral, no Ceará, mas concluiu que, sem praia, não suportaria o calor de mais de 40 graus. Acabou em Aracaju, onde fez Gestão de Saúde Pública e Saúde Coletiva. Tornou-se funcionária da secretaria estadual de Saúde e percorreu 28 municípios do Baixo São Francisco para compreender as necessidades da população e organizar o atendimento. Até hoje não tem plano de saúde privado e só reserva elogios para a cobertura do SUS na capital sergipana.

Neste ponto da história, a MSF entrou na vida de Debora e o mundo virou – o que era longe ficou perto. Como em filmes de suspense, ela recebe ligações do tipo: “Debora, temos uma missão para você”. Mas, ao contrário do cinema, em que são espiões equipados com armas de última geração que recebem esse tipo de chamada, Debora parte em missões humanitárias. E arrisca a própria vida armada apenas de conhecimento e da ideia de que a humanidade inteira é sua família.

Debora nos apresenta uma realidade que, não por acaso, pouco chega até nós. Depois de ler sua entrevista, pode parecer difícil acreditar. Mas raras vezes conheci alguém tão leve, transparente e feliz. Os olhos de Debora brilham enquanto conta sua experiência. Nos momentos de maior brutalidade se turvam – e depois voltam a brilhar. Ela não perde nenhuma oportunidade de rir e sua voz é sempre suave. E, quando abraça as pessoas, abraça. Dá vontade de se tornar amiga dela pelo resto da vida. Deve ser por isso que a legião de amigos de Aracaju a espera no aeroporto com champanha e balões quando ela chega estropiada de mais uma missão.

É isso. Debora é com certeza uma das pessoas mais vivas que conheci. E esta é uma entrevista ao mesmo tempo chocante e inspiradora. Dois adjetivos que só alguém com as qualidades de Debora, capaz de arrancar esperança nos cenários mais brutais, poderia acrescentar a um mesmo substantivo. Por isso, foi também uma entrevista muito difícil de cortar. Depois de bastante sofrimento, consegui deixá-la em um terço da original. E guardar o restante para outro momento. Vale cada linha. E meu sonho é que todos possam lê-la e ser movidos pela vontade de compartilhá-la com os amigos e também com desconhecidos.

A foto abaixo foi escolhida por Debora e feita em Porto Príncipe, no Haiti, em 2009. A criança em seu colo se chama Estelle. Sua família queimou suas duas mãos e seus dois pés numa chapa quente, causando queimaduras tão graves que a menina correu o risco de sofrer a amputação dos membros. Durante todo o tratamento, Estelle só aceitou o toque de uma pessoa: Debora.

O que Debora diz é vital. Espero que, ao ler a entrevista a seguir, cada leitor possa alcançar Debora e incluir uma porção maior de mundo dentro de si.

Arquivo         Pessoal

Como você foi parar nos Médicos Sem Fronteiras?
Debora Noal
– Vige! É uma longa história.

A gente tem tempo...
Debora –
Um dia um amigo me disse: “Ó, Débora, acho que você tem todo o perfil para trabalhar nos Médicos Sem Fronteiras. Você nunca pensou nisso?” Eu nunca tinha escutado sobre os Médicos Sem Fronteiras na minha vida. Não sabia nem o que era isso. Acho que era janeiro ou fevereiro de 2008. Aí eu falei... “Nossa, Médico Sem Fronteiras? Não sei...”. Ele disse: “Dá uma olhada no site...”. Mas a minha vida era bem conturbada nessa época e eu nem olhei.

Como era sua vida nesse momento?
Debora -
Eu tinha um consultório com dez pacientes, que atendia à noite, fazia mestrado em Saúde Coletiva, tinha um emprego no Estado que eu adorava e morava numa cobertura de frente para o mar. Só eu e minha gata Filomena. Mas esse meu amigo ficou martelando. E eu acabei me inscrevendo. Dois meses depois eles abriram uma prova de seleção. Eu não sei se você já chegou a dar uma olhada no site, mas tem de fazer um monte de testes. Depois de você mandar seu currículo, você tem de ir fazer os testes e as entrevistas pessoalmente. Tem teste prático, técnico, de equipe, de gestão, uma entrevista em português e depois uma entrevista na língua que você escolher, que pode ser inglês ou francês.

E que língua você escolheu?
Debora –
O francês. Eu passei em tudo, mas eles me falaram: “Olha, você tem de melhorar o seu francês. Tem que ter francês fluente pra ir”.

Como era o seu francês nesse tempo?
Debora -
Era uma porcaria... muito ruim. Eu tinha um namorado que era francês, um parisiense. E a gente conversava muito. Mas era meu único contato com a língua. Se eu namorasse um inglês provavelmente teria escolhido o inglês e teria sido mais tranquilo. Mas eu voltei e estudei muito francês, sozinha. Eu fazia supervisão nos 28 municípios do Estado e ia escutando um CD com as aulas em francês até chegar lá. Chegava lá, trabalhava e voltava escutando. Um dia eu estava indo para uma reunião de trabalho em que eu seria promovida e ganharia um salário maior. Eu estava a caminho quando me ligaram dos Médicos Sem Fronteiras: “Olha, a gente está te ligando porque encontramos a sua missão”. Nossa... e qual é a minha missão?

É forte essa história de: “Encontramos a sua missão....”
Debora -
Então, como assim, encontraram a minha missão? “É, porque teve um furacão em Gonaives, no Haiti, e há muitas pessoas feridas. A gente gostaria de saber se você está disponível para partir nesta semana”. Era setembro de 2008. E eu... “Como assim? Eu fiz um teste meses antes e vocês estão me ligando hoje para saber se eu posso partir nesta semana...” Eu com toda a minha vida estruturada, tudo. Aí eu voltei para casa e falei: “Filó, mudança de planos. Vamos mudar de casa!”. E aí, foi.

Mas o que fez você aceitar esse, sei lá, “chamado”? Largar tudo e se jogar?
Debora –
No final daquela conversa com aquele amigo que me falou dos Médicos Sem fronteiras, ele disse: “Sabe, Debora, eu acho que há coisas que a gente precisa pensar... porque provavelmente alguém, em algum lugar do mundo, está esperando por você”. Eu fiquei pensando... É, teoricamente isso não faz nenhum sentido. Alguém, em algum lugar do mundo, está esperando por mim? Ok, né? Mas essa frase ficou, ficou bem forte. E aí, quando a recrutadora me ligou e falou – “Olha, encontramos a sua missão” – eu pensei: o que é um mestrado e um emprego fixo e uma cobertura de frente para o mar e uma gata, o que é? Não é nada...

Como assim “não é nada”? Para a maioria das pessoas é tudo...
Debora –
Dinheiro, estrutura material, nunca foi o meu forte. Não é uma coisa que me toca muito. Acho dinheiro ok, é legal. É bem interessante, você consegue fazer um monte de coisas. Mas sem ele você também consegue fazer um monte de coisas. E acho que, se você se apega a isso, a alguma coisa que é material, isso quer dizer que você está plantando sua raiz por uma estrutura material. Eu quero ter raiz, mas raízes aéreas, que eu possa levar para onde eu quiser.

E aí, você largou tudo e se foi para o Haiti?
Debora
– A gata ficou com a vizinha, uma amiga minha do Sul. Fui lá, deixei a Filomena com todas as bagagens na casa dela. Pedi demissão, acabei o mestrado, tudo para passar um mês. Porque era uma missão de urgência. Entreguei o apartamento, deixei os móveis no meio do corredor porque não tinha condições de distribuir tudo rápido. Só que essa missão se prolongou para quatro meses e meio...

Foi fácil esse desapego pelas suas coisas?
Debora -
O que não é possível carregar comigo é porque não é meu. As pessoas diziam... “Mas você vai deixar tudo? Máquina de lavar no meio do corredor, televisão... e se roubarem?” Se roubarem, roubaram... O que eu vou fazer? Não posso passar minha vida inteira segurando uma televisão na mão... Lembro que eu ia recebendo emails dos vizinhos ao longo dos meses. “Posso ficar com a sua máquina de lavar roupa?” Pode. “O seu quadro está no meio do corredor... posso botar na minha casa?” Pode. E aí, quando eu voltei, foi bem legal, porque fui indo em cada vizinho, tocando na porta... Você tem alguma coisa minha? “Tenho, seu guarda-roupa está aqui...” Foi bem interessante.

Me fala mais desse perfil dos Médicos Sem Fronteiras que é tão você...
Debora –
Eles buscam alguém com muito interesse de prover cuidado para o outro. A gente brinca sempre que na MSF o primeiro objetivo principal é o beneficiário, o segundo objetivo principal é o beneficiário, o terceiro é o beneficiário, o quarto é o beneficiário, o quinto, talvez, o staff nacional, o sexto, o expatriado, que são as pessoas como eu, que saem do seu país para prover o cuidado de alguém. Isso, dentro de uma estrutura de saúde pública, não é muito comum. Eu trabalhava muito no Estado, tipo manhã, tarde e noite. Todo mundo me dizia: “Por que você trabalha tanto? Não tem necessidade...” Como não tem necessidade? Tem muita coisa para organizar. A gente discutia muito em equipe. E as críticas eram: “Super Debora”. Mas isso não era no sentido positivo, mas no sentido negativo. Tipo: “Você está aqui nos matando... dá uma folga! Deixa a gente respirar”. Tanto que, quando eu pedi demissão, todo mundo falou: “Ah, agora ela encontrou o lugar da vida dela! Um lugar que precisa muito, e que tem muita gente com o mesmo perfil, do tipo ‘não sossega’”. Acho que vem muito ligado a isso, de ter esse desejo de prover um cuidado para o outro. Eu lembro que eles diziam: “Mas não é ninguém da sua família...”. Sim... mas qual é o seu conceito de família?

Qual é o seu?
Debora –
Família, para mim, pode ser o cara que está do outro lado da rua. Ok, ele não tem o mesmo sangue, eu nunca vi ele na vida, mas a minha família eu também vejo muito pouco. Então, se o parâmetro é esse, pessoas que você vê com muita frequência, bom, então o meu vizinho é a minha família. Ou a pessoa com quem eu trabalho, ou o gestor que eu estou vendo todo dia na coordenação... Então esse cara é a minha família, se esse é o conceito. Sempre tive um prazer bem grande de viver em família, mas tomando em consideração esse conceito de família bem ampliado. Pode ser qualquer pessoa. Não tenho essa pretensão do mesmo sangue ou do mesmo nome ou de uma história pregressa. E a maioria das pessoas nem conhece a história pregressa da sua família, né? O cara que está lá no Congo, no meio de um conflito armado, também é da minha família. É ser humano? Está valendo.

Como é uma missão?
Debora –
Em missão todo dia é segunda-feira de manhã. Não existe sábado, não existe domingo. Você acorda e é segunda-feira, no outro dia é segunda-feira de novo, e no outro ainda é segunda-feira, e todo mundo tem muito... muito brilho no olho. Sabe? É segunda-feira, mas olha só, tem de fazer isso, isso e isso. A gente briga muito, discute muito, mas todo mundo tem um foco. Ninguém duvida de que o foco principal é o beneficiário, que tem gente que precisa de ajuda, que precisa ser cuidada.

Todo mundo sabe que faz algo que dá sentido à sua vida...
Debora –
É assim.. você está cansada, você está aniquilada, mas a alma está salva, você está se sentindo bem com o que está fazendo. Não tem nenhuma conotação religiosa, a gente até brinca que somos os “ateus sem fronteiras”. A gente acredita no cuidado com o ser humano. Não dá para esperar uma entidade – tomara que ela exista, e tomara que ela um dia comece a se organizar de uma outra forma, porque o mundo é bem cruel. Mas a gente precisa cuidar agora.

Mas nessa primeira missão, especialmente, deve ter dado um frio na barriga, não? Porque as coisas na vida são um pouco duras também...
Debora –
Um pouco, não. São muito duras. Mas embora eu não seja nenhuma Pollyanna, nunca acho que as coisas vão dar errado. Eu sempre tenho certeza que vai dar certo. Mesmo quando der errado, é porque está dando certo. O meu único medo era realmente com a língua. Eu não tinha medo do que ia encontrar lá. Eu não tinha medo de um novo furacão, como é sempre uma possibilidade em um desastre natural. Isso não me inquietava. A minha inquietação era com o francês – como é que vou me comunicar? Por que eu sou psicóloga, né? Eu trabalho com a fala. Então o significado da palavra é muito importante. E o meu receio era: será que eu vou conseguir compreender o significado da palavra do outro? Depois da minha primeira missão compreendi que o significado da palavra, numa catástrofe, é muito pequeno. É muito o que você sente quando está junto com o outro, e o que ele consegue te passar de sofrimento. E quais são as consignas que ele te passa de sofrimento.

E o que são consignas?
Debora –
Consignas são os códigos que ele está te passando de sofrimento. E que, normalmente, não são transmitidos pela fala. Porque são comunidades e sociedades muito pouco trabalhadas no sentido material, tendo como parâmetro uma estrutura social ocidental como a nossa, com educação, escola... São pessoas que normalmente falam muito pouco, mas que corporalmente são muito expressivas. Só que cada comunidade se expressa de uma forma. Para você conseguir compreender os códigos de sofrimento que o outro está te passando, você precisa de tempo. E é muito interessante. Eu estou indo agora para a minha décima missão. E fui ficando muito rápida para perceber as consignas do outro – a forma como cada um se expressa, nem tanto com a palavra, mas a forma corporal também. E é interessante porque o trabalho é muito diferente do que é numa urgência ou do que é num consultório, por exemplo. O trabalho é muito diferente porque você não tem o tempo que você tem no consultório, você não tem a estabilidade que você tem na urgência.

Como assim?
Debora –
Num trabalho de urgência aqui no Brasil, por exemplo, a urgência é do outro, não é a sua urgência. Mas, quando você está numa catástrofe, a urgência também é sua, porque você também está sob o efeito da catástrofe natural. Por exemplo, no terremoto eu estava atendendo as pessoas e o chão estava tremendo. Então eu também estava dentro de uma estrutura de perigo, que é a grande diferença da urgência que a gente vive aqui. Quando eu estava dentro de uma ambulância do SAMU ou quando eu estava dentro de uma Unidade de Pronto Atendimento, eu sabia que a urgência era do outro. Ele estava vindo de um contexto de desastre, mas eu não participava daquele desastre, eu participava de um outro momento, que era uma possibilidade de estruturar e estabilizar psicologicamente uma pessoa. Lá, numa catástrofe, não. Você está junto, você vivencia a catástrofe junto com o outro. É uma forma de dizer para o outro: ok, você não está sozinho, estamos juntos nessa. Isso é bem maluco.

E como você faz?
Debora –
De várias formas. Às vezes, só pelo fato de você estar dentro do mesmo espaço físico que ele, você está mostrando que ok, é perigoso, mas se eu estou aqui e estou te dizendo que funciona, você pode ficar. Como, por exemplo, dentro das unidades que a gente montou no terremoto no Haiti. Depois de 24 horas tudo ainda tremia: as unidades de saúde tremiam, o chão tremia muito, e eu lembro que cada vez que começava um novo tremor de terra as pessoas tinham o ímpeto de sair correndo. Só o fato de você estar ainda dentro da estrutura e de dizer para a pessoa – “Olha, o engenheiro já disse que essa unidade não vai cair se tiver um outro terremoto até 7.0, então a gente pode ficar, e vamos ficar juntos” – já muda. E a outra maneira é investigar coisas bem práticas: que tipo de coisa você pode ir fazendo para se estabilizar. Quase sempre o pedido é o mesmo: “Me ajuda a esquecer”.

E como você responde a um pedido como esse?
Debora –
A minha resposta é sempre a mesma: “Infelizmente eu não posso te ajudar a esquecer. Lembrar, você vai sempre. O que eu posso fazer é te ajudar a lembrar dos eventos com menos sofrimento”.

E como se faz isso?
Debora –
Se faz com um pouco de técnica, um pouco de tempo e muito do desejo do outro de querer elaborar o evento que ele vivenciou. E que não é fácil. Você perde nove pessoas de sua família ao longo do tempo ou você perde tudo – sua casa, seu trabalho, tudo aquilo que você lutou muito para construir e que para a maioria dos seres humanos são coisas muito importantes. Então você chega quando nem elas mesmas gostariam de estar naquele lugar. Essa é a grande especialidade, acho, da organização – chegar quando nem mesmo as pessoas que vivem lá queriam estar naquele lugar. E é nesse momento que você chega. E às vezes você faz um atendimento e fica guardado na cabeça das pessoas para o resto da vida. Você pode mudar completamente o destino de uma pessoa com um simples atendimento.

Me dá um exemplo concreto...
Debora –
Vou dar o exemplo da dona Marie, do Congo. O LRA (Lord’s Resistance Army – Exército de Resistência do Senhor), que é um grupo de rebeldes do governo ugandês que promove vários ataques na fronteira entre o Burundi e o Congo, ataca pessoas como a dona Marie. Essas pessoas atacadas não falam nem a mesma língua, não sabem por que o exército e os rebeldes ugandenses atacam suas comunidades. Lá não existe televisão, não existe internet, não existe rádio, então elas não têm noção de que existe um conflito armado, muito menos que elas estão sendo alvos de um conflito armado. A cidade, Niangara, é considerada o coração da África. Tem inclusive uma pilastra que diz: “Você chegou ao coração da África”.

Deve ter sido muito difícil chegar até lá no meio de um conflito...
Debora –
Muito difícil. A gente desceu em Isiro com um avião pequeno e depois fez oito, nove horas naquelas camionetes tracionadas para chegar a esse lugar. Tudo poderia acontecer no meio do caminho, tudo. Nós éramos a primeira equipe a tentar chegar lá para ver qual era a real situação. A única coisa que a gente sabia é que as comunidades estavam sendo atacadas e que eram ataques muito cruéis. Os rebeldes chegavam nessas comunidades próximas a Niangara, onde as pessoas moram em casas de barro com palha. Os rebeldes jogam fogo nas casas durante a noite e, quando as pessoas estão saindo, eles atiram com aquelas Kalashnikov, que são metralhadoras que não travam. Então eles podem matar muitas pessoas ao mesmo tempo. Alguns morrem queimados, outros morrem de tiros, outros morrem degolados. Outros ainda morrem de hemorragia, porque eles cortam as cartilagens com faca: as orelhas, a ponta do nariz, os lábios. E muitas meninas e mulheres morrem de estupro, de hemorragia após o estupro. Porque os estupros são coletivos. De 30 a 40 homens estupram uma única mulher. Eles fazem os maridos e os filhos segurarem a mulher enquanto os homens estupram em massa. São requintes de crueldade impressionantes.

E foi isso o que aconteceu com Marie?
Debora –
Essa mamãe Marie me tocou muito – eu digo mamãe porque lá todo mundo se chama de mamãe, todo mundo que é mulher se chama mamãe alguma coisa, e homem se chama papai alguma coisa. É um título de respeito. Fazia 24 horas que a gente tinha chegado quando mamãe Marie apareceu. E eu lembro que ela chegou desesperada. Uma mulher muito magra, alta, com a roupa completamente rasgada – porque eles estão sempre com um pedaço de pano amarrado nas pernas para fazer uma saia, um outro amarrado em cima para fazer uma blusa, e normalmente um terceiro para amarrar um bebê. Todos da mesma cor. E ela chegou muito rasgada. E ela disse: “Eu não tenho nenhum motivo para viver, mas me disseram que aqui tinha uma branca que ajudava as pessoas”. Eu falei: “Bom, vamos ver, né? De que ajuda você precisa?”. Ela morava com seis filhos e o marido. Quando um dos filhos estava saindo do le marché (pequenas feiras no meio da rua), alguém gritou: “Corre, porque acabaram de matar teu marido na estrada”. E ela disse: “Como assim, mataram meu marido?”. E disseram: “Os LRA encontraram teu marido na estrada e mataram. Corre do povoado porque eles vão matar todo mundo”. Ela falou: “Mas eu tenho seis filhos dentro de casa...” E aí ela voltou para a sua comunidade, com seu bebezinho amarrado na cintura, e pegou os filhos. E saiu correndo para o meio da floresta, que é mata fechada. Só que no meio do caminho ela percebeu que estava com cinco crianças. Faltava a de dois aninhos. Ela deixou os filhos na floresta e correu de volta para casa com seu bebê amarradinho. E viu a pequenininha dentro de casa, queimando, junto com todas as coisas. Desesperada ela correu para buscar os outros que estavam no meio da floresta e caminhou durante muitos dias dentro da mata fechada com as cinco crianças, sabendo que o marido já tinha morrido, para conseguir ajuda. E aí conseguiu chegar a outro povoado, que era onde morava a mãe dela. E, alguns dias depois, o LRA alcançou essa comunidade e ela sofreu um estupro coletivo. Dezenas de homens a estupraram. E depois mataram dois dos filhos dela. Mamãe Marie seguiu fugindo, mas a cada ataque foi diminuindo o número de filhos dela. Quando ela chegou a Niangara ela tinha apenas um bebê, que era o que estava amarrado na cintura. E ela disse: “Eu não tenho nenhuma razão para viver”.

O que aconteceu com os outros filhos dela?
Debora –
Foram mortos e uma menina sequestrada. É muito comum sequestrarem meninos e meninas. As meninas são escravas sexuais. Durante todo o tempo em que estão sequestradas elas se deslocam na floresta junto com os guerrilheiros. E os meninos são sequestrados para carregar as armas e os roubos em grandes balaios sobre a cabeça. Os guerrilheiros saqueiam as comunidades, queimam as casas, atiram nas pessoas. Isto tudo é uma forma de demonstrar poder diante do governo congolês, que se posicionou contra essa força armada ugandesa. Porque até então os congoleses não tinham sido alvos dos guerrilheiros ugandenses. Mas a partir do momento em que o governo congolês se posicionou contra esse tipo de conflito, eles começaram a atacar as comunidades. Mas não existe informação. Então as pessoas são atacadas sem saber por quê. Logo que eu cheguei, eu não conseguia entender. Como assim? Foi atacada, mas por quê? Mamãe Marie dizia: “Não sei, não sei quem são essas pessoas, eu não sei por que fui atacada, não sei por que eles mataram meu marido, por que mataram meus filhos. Só sei que eu não tenho nenhuma razão para estar viva. Eu não tenho nada. Eu tenho um bebê. E vou cuidar como desse bebê se eu não tenho como trabalhar?”. É uma comunidade que vive de trocas. Não há dinheiro. Então você troca serviços para poder viver. Mas você vai trocar o que quando você não tem nada? Eles vivem de plantar coisas na floresta. Desmatam uma parte da floresta, plantam e aí aquilo ali serve de troca no mercado. Só que quando você não tem mais sua terra, você vai fazer o quê? E eu lembro que no dia em que a encontrei, pensei: como eu posso ajudar uma pessoa dessas? Ela perdeu tudo... E eu era a única psicóloga nesse lugar, a única. Não tinha nem mesmo um psicólogo nacional, ainda não tinha tradutor, eu tinha acabado de chegar à cidade e, se você me perguntar como fiz o atendimento, até hoje eu não me lembro, porque eu não falo a língua dessa mulher. E eu escutei toda essa história...

Em que língua?
Debora –
Ela falava “lingala”.

E como você a escutou em “lingala”?
Debora –
Você começa a se dar conta que a consigna do sofrimento não precisa de muitas palavras. Até porque a pessoa está em estado de choque, então ela tem muita dificuldade de se expressar. Normalmente ela expressa com o corpo, com o olhar, com a forma de levantar o pescoço, a forma de gesticular. E eu me lembro de ter pedido ajuda para escrever a história dela, porque eu precisava descrever para poder organizar algumas coisas mais práticas. Onde ela vai dormir agora? O que ela pode comer? Onde ela pode se vestir? Nesse lugar a postura e a forma de se vestir são muito importantes. Para você ter uma ideia, as pessoas entram no rio antes de irem para o hospital: lavam todas as roupas, colocam na margem do outro lado e ficam nuas dentro do rio esperando secar, porque só têm uma peça de roupa. Quando as roupas secam, elas saem do rio, vestem e só então vão ao hospital. Mesmo depois de um estupro, depois de terem sido baleadas, depois de terem sido mutiladas. Elas têm uma preocupação em chegar limpas e a vestimenta é importante.

E como você fez para ajudar uma mulher que tinha vivido isso?
Debora –
Eu perguntei a ela o que a fazia feliz antes disso tudo acontecer. Se ela lembrava a última vez em que tinha sido feliz. E ela disse: “Hoje eu não lembro, mas eu vou tentar me lembrar”. E eu falei: então, Marie, você pode voltar amanhã? E ela disse que podia.

E ela voltou?
Debora –
Depois disso, eu fui encontrar outras mulheres da comunidade. Contei a história dela. E as mulheres a acolheram dentro de casa. São pessoas que moram em quatro, cinco, num espaço do tamanho do meu banheiro. Não tem divisória, não tem cozinha, é fogo de chão do lado de fora da casa, faz muito calor. E as mulheres encontraram um lugar para ela dentro de casa. Do tipo: “Você é bem recebida dentro da nossa comunidade”. E ela ficou muito surpresa. Ela nunca vira essas pessoas na vida e essas pessoas estavam dispostas a acolhê-la. E no outro dia ela voltou e me agradeceu muito. Ela disse: “Eu me lembrei da última vez em que eu fui feliz”. E quando foi, Marie? Ela falou: “Foi quando eu dancei”.

Nossa...
Debora –
E aquilo ficou... dançou, tá bom. Eu fiquei pensando em como montar um grupo terapêutico, porque a Marie foi só a primeira. Como ela, nessa missão, houve mais de 200 mulheres que eu atendi, sozinha, num espaço de um mês e meio, dois meses. Mulheres e meninas violentadas. Meninas de dois anos de idade, de três anos de idade, de 10, 15, que eram violentadas, estupradas, mutiladas. E eu lembro que o grupo terapêutico nessa comunidade foi de dança. Elas dançavam e com a dança elas contavam a sua história. Era muito bonito. Eu não entendia nada da música, mas eu sabia que a música tinha um conteúdo muito triste. Elas dançavam sempre numa roda e junto com a música cada uma contava a sua história. E choravam e se abraçavam e continuavam contando sua história e dançando. Para mim, cada dia era um ensinamento diferente. Ok, o sofrimento existe, a dor é frequente, a dor é permanente, mas quando a gente está no coletivo isso tudo é dividido. E a dança mostrava isso: a gente não pode parar. E velhinhas de 70, 80 anos, dançavam e saltavam indo até o chão e levantando de novo, porque as danças são muito expressivas. Nessa época, eu já tinha uma tradutora. Ela falou: “Vou te contar uma das músicas”. E era assim: “Quando eu cheguei aqui razão nenhuma eu tinha para viver, agora eu tenho não só uma razão, mas tenho uma família de novo. Tudo eu perdi, mas se Deus quis que assim eu tivesse uma comunidade e uma nova família, então eu fui aceita, e assim eu aceito. E assim agora tenho uma nova vida, uma nova razão para viver”.

É terrível e lindo ao mesmo tempo. Como você sai de uma missão como essa? Como você vive depois de ter vivido isso?
Debora –
Eu saí arrasada. Caramba, não fiz nada por essas pessoas. Tinha muita coisa que precisava ter sido feita. Elas precisam de paz. Não existe saúde, não existe felicidade num lugar onde você não tem paz, o princípio básico da humanidade. Na época eu trabalhava com a seção belga. Então, cheguei à Bélgica muito mal. Fui fazer meu relatório e contei sobre o número de pessoas que estavam sendo violentadas. Disse que a gente precisava fazer alguma coisa. E falei: “Eu estou mal porque não me importo de passar a minha vida inteira atendendo essas pessoas em forte sofrimento, mas eu me importo de saber que amanhã, depois de amanhã, e depois e depois e depois elas vão continuar sofrendo esse mesmo tipo de violência se isso não parar. Agora a primeira necessidade é uma equipe de paz. Como fazer isso?”.

E como fazer?
Debora –
Nós temos jornalistas dentro da organização. Temos um compromisso com a denúncia quando existe qualquer tipo de ferimento aos Direitos Humanos. Me encaminharam para o serviço de comunicação e falaram: “A gente vai fazer alguma coisa”. Eu saí de lá, e os jornalistas foram. E fizeram reportagens e documentários. Divulgaram. Um ano e pouco depois, em 2010, eu voltei para lá. Normalmente depois de um estupro, no Congo, uma mulher não pode mais casar. Não tem mais o direito de casar porque ela não é mais virgem e porque ela já teve a sua primeira experiência. Então ela é alguém que está “suja”. E um dos trabalhos era mostrar para os homens e a comunidade que não, ela não estava suja. E que era preciso rever algumas estruturas da cultura. E, quando voltei, eu perguntei: “Onde está o meu grupo?”. E a resposta foi: “Todas casaram”. E elas vinham à minha sala de consulta mostrar seus bebezinhos, apresentar o marido, os sogros. Vinham com a família inteira. Eu falei: “Gente, não acredito!”.

Reinventaram a vida....
Debora –
Literalmente. Reinventaram uma forma de viver. E elas estavam felizes. E eu fiquei muito feliz.

Essa missão do Congo foi a mais dura para você?
Debora –
Sim, no sentido de que nós éramos a única organização que estava lá. O medo era perene a noite inteira. Eu tinha muito receio, porque eu via as mulheres, a forma como eram cometidos os estupros. E eu era a única mulher nessa missão. Eram 14 homens e eu. Então eu sabia que, se os rebeldes ugandenses entrassem na nossa casa, o desastre e a violência que eu atendi o dia inteiro aconteceriam comigo. Então a dor era constante. Foi um mês e meio, quase dois meses, de dor 24 horas. De dia, o dia inteiro, enquanto existia luz, a dor era compartilhada, minha com elas. E durante a noite, o medo – aí o medo era só meu. Quase a noite inteira sem dormir, pensando. Cada folha que mexia do lado de fora do quarto, eu pensava: podem ser eles. Porque a gente não sabia até onde os ataques poderiam chegar. Um dos ataques chegou a sete quilômetros de onde a gente estava. Muito perto mesmo. Barulho de tiros, as pessoas gritando, fogo, então a gente sabia que, se chegasse à comunidade, nós também seríamos alvo.

E como era esse medo?
Debora –
Bom, luz a gente já não tinha. A gente usa sempre lanternas na cabeça para se locomover, para ir à latrina, para qualquer coisa. E o meu medo era de tudo. Medo de dormir profundamente, porque sabia que, se eu dormisse um sono mais profundo, perderia a possibilidade de me proteger, se houvesse necessidade de fugir. Ao mesmo tempo, o medo de...ok, mas vou fugir para que lado? Tinha medo de sofrer uma violência sexual, que é uma coisa que me toca muito. Desde que me formei eu trabalho com violência sexual. Aqui, inclusive, em Sergipe. Foi um dos motivos de eles terem me chamado para a organização – por ter uma expertise de trabalho com mulheres violentadas. E é uma coisa que sempre me tocou muito porque, quando você escuta o sofrimento de alguém que vivenciou uma violência sexual, é como se você compartilhasse a história dessa pessoa, e você acaba vivenciando um pouco da história dela. E as histórias são muito doídas. Alguém que entra dentro de você é alguém que te invade, te dilacera. Como elas mesmas dizem: “O meu braço, você pode quebrar, ele vai se reconstituir. Mas por você ter entrado dentro de mim, eu nunca vou poder te tirar”. E essa é uma dor muito forte. Então, o meu receio também era de estupro. Inclusive, pelos estupros serem coletivos, as mulheres têm fístulas depois. O canal da vagina e do ânus viram um canal só. Então você não consegue mais conter nem sua própria urina nem suas fezes. Você está andando na rua e sente que sua urina está saindo. É muito triste. E há ainda a vergonha de ir a um espaço público, por exemplo. Elas vão ao hospital e não querem sentar na cadeira. Você diz para elas: pode sentar! “Mas eu não quero...” Até eu me dar conta de que elas não se sentavam porque tinham medo de fazer xixi ou de fazer cocô em cima da cadeira, porque elas não conseguem sentir quando vai sair... Uma delas me contou que ficam de um a dois dias sem comer nem beber nada antes de ir a uma consulta, para não fazer xixi nem cocô dentro do hospital, ou dentro da estrutura de saúde. Você imagina o sofrimento de alguém que, a cada vez que tem de ir a um espaço coletivo não pode comer nem beber um ou dois dias antes? É muito sofrimento. Mas é interessante, porque também tem beleza nesse lugar, e também tem riso, também tem desejo de vida. É um negócio impressionante. A missão tem de ser feita com todos os sentidos: o que você escuta, o que você vê, o que você toca, o que você sente, o que você cheira...

Como é o cheiro?
Debora –
Cheiro é uma coisa difícil de contar para as pessoas. O cheiro da morte é um negócio difícil de descrever. Como você descreve o cheiro da morte? Cheiro de ser humano. No Brasil, a gente tem muito pouco cheiro de ser humano. Porque ser humano não cheira bem, o ser humano cheira mal. Tipo: fique sem colocar seu desodorante, sem passar xampu no cabelo, sem passar um bom sabonete no corpo, sem passar um creme, um protetor solar. E sinta seu cheiro daqui a uma semana. É um cheiro forte de gente. E eu vivo sentindo cheiro de gente, em todos os lugares. Normalmente, nos lugares aonde eu vou não existe xampu, não existe sabonete, não existe desodorante. Cheiro de ser humano é um negócio impressionante. E o cheiro do medo do ser humano é uma coisa forte, também. E o cheiro da morte, mais ainda. No Haiti, depois do terremoto, havia muitas pessoas amputadas. E o cheiro daquele sangue, dois, três dias depois... O cheiro daquelas pessoas em decomposição, ainda vivas, é um cheiro muito forte. Muito, muito forte, que não dá para descrever. Posso descrever para as pessoas o rosto, a postura de dor, de sofrimento, mas o cheiro eu não consigo descrever. É uma das coisas mais fortes que eu senti naquela missão. O cheiro da morte. Primeiro, você começa a perder a capacidade de sentir seu próprio cheiro, imagina o cheiro dos outros. E, depois de um tempo, você começa a perceber que tudo cheira, inclusive o medo, a morte, a dor, a felicidade – tudo tem seu próprio cheiro. E às vezes é bem doído.

E como você se vira em cada volta de missão? Porque eu faço algumas reportagens complicadas, nem perto da sua experiência, mas mesmo assim acho complicado voltar e sofro bastante. Como você faz?
Debora –
Eu preciso voltar para um lugar onde esteja sozinha. E por isso Aracaju é uma ótima escolha, porque é calma e tranquila. Normalmente eu tenho alguns registros das viagens. Registro escrito, ou foto, ou alguma gravação. Eu revisito tudo isso, revejo as fotos, olho algumas filmagens, imagens que eu gravo, coisas que escrevi. Reviso tudo de novo. Não remexo, não reedito as coisas, o que está escrito está escrito. Naquele momento era tudo o que eu podia fazer para elaborar minha vivência naquele lugar. E eu preciso revisitar várias vezes. E eu preciso de água. É a razão de eu estar morando aqui em Aracaju até hoje. Preciso de mar, preciso caminhar, andar de roller na praia, tomar minha água de coco. Uma parte do meu projeto terapêutico é dormir até quando eu tiver vontade de dormir, comer quando tiver vontade, beber quando eu tiver vontade...

Você deve ficar totalmente esgotada...
Debora –
Na missão, você não sente que está cansada. Você está com a sua química corporal tão alterada, é tanta adrenalina, é tanta excitação, que você não percebe. E eu só percebo quando entro no avião e me dá um sono incontrolável. Não escuto nada. Eu lembro até de uma vez em que eu perguntei: “Moço, já decolou?”. E ele começou a rir: “Faz mais de 15 horas, e nós já estamos chegando ao Brasil”.

Você faz terapia?
Debora –
Quando eu volto faço terapia todos os dias ou três a quatro vezes por semana. Brinco com minha terapeuta: “Eu trouxe um monte de coisas para digerir junto contigo”. Preciso desse tempo para digerir. Mas tenho feito missões muito rápidas, uma seguida da outra. Tipo: voltei da Líbia no dia 30 de março e agora estou indo para o Quirguistão. Só duas semanas entre uma e outra.

Dá tempo de digerir tudo o que você viveu em duas semanas?
Debora –
A primeira semana é para digerir. A segunda, para me preparar. Tipo agora, né? Tem computador em todas as salas aqui de casa, porque eu estudo em um, cansei, vou estudar em outro. Estudo um pouco da cultura, um pouco da língua, alguns hábitos, e faço um pouco de preparação psicológica para o que vou vivenciar, para tentar avaliar até onde eu posso ir nesse lugar.

É fácil para você partir desses lugares?
Debora –
É como eu te disse. Eu não costumo focar muito no que fica, mas no que eu estou indo buscar. Como no sofrimento: você tem sempre uma alternativa. Não é o evento, em si, que te causa a dor. É o significado que você dá a ele. Às vezes me incomoda partir sem ver algumas respostas. Mas sei que o mundo não para quando eu vou embora. O mundo continua. E aquilo que você faz quando você está lá tem reverberações dentro das pessoas e dentro dos espaços. Então, é uma dor do tipo: estou indo embora, não vi o resultado disso, mas alguém vai ver. E tomara que aconteça. Mas não chega a ser uma sensação ruim. Tem uma sensação boa: estou voltando para casa, vou dormir, vou tomar banho de verdade, vou comer... Tem uma sensação boa, como quando eu saio daqui. Dominic, o recrutador do Rio, me liga, dizendo: “Debora, temos uma missão para você”. Mas, para mim, parece que ele diz: “Debora, você acaba de acertar o bilhete premiado da Loteria Federal, e você ganhou sozinha!”. É a minha décima missão, mas cada vez que ele me liga é uma felicidade, uma sensação bem maluca. Ele está me dizendo que aconteceu um furacão, um terremoto, e eu estou muito feliz porque sou eu que fui chamada para ir nessa missão. Podia ser qualquer outra pessoa, mas escolheram a mim. E me dá uma sensação boa, sabe? Sou eu que estou indo vivenciar isso, dividir isso com aquelas pessoas, naquele momento, naquele lugar. É uma sensação maluca, tipo: o salário não é bom, as condições de vida não são boas, a segurança e a estabilidade são zero, e ainda assim eu sou a pessoa mais feliz do mundo cada vez que ele me liga dizendo que estou indo. Você lembra daquele programa em que a pessoa ficava com os ouvidos cobertos dentro de uma cabine? Aí o apresentador ficava fazendo propostas....(ela imita a voz) “Você troca sua casa na praia, uma cobertura, por uma caixa de fósforos?” E a pessoa: “Sim!!!” De olhos fechados, sem ouvir nada, a pessoa super feliz... sou eu. Você troca a sua vida de ir para a praia, tomar água de coco, caminhar na orla, ficar no seu apartamento, tomar um banho gostoso para tomar banho de caneca no meio do mato, dentro de um conflito armado, com risco de vida? Siiiiiim!!! (risos) O ser humano não é congruente nem lógico... então, ok.

Quando você olha para trás, lá na sua infância, você consegue enxergar a arquitetura que levaria você a esse caminho?
Debora –
Eu sou filha de pessoas bem libertadoras, que nunca me podaram. Quando eu fiz 15 anos, escrevi uma carta para meu pai e minha mãe agradecendo por terem me dado asas para eu saber que podia voar para qualquer lugar e também raízes para saber que podia voltar sempre que precisasse. Meus pais sempre foram muito caseiros. Meu pai era relojoeiro e minha mãe, advogada. Nunca foram de viajar muito. Foi depois que eu comecei essa minha vida bem nômade, bem “caminhadeira” no mundo, que a minha mãe resolveu sair, virar nômade. Mas acho que a razão é que, além de eles terem sido muito libertadores, eles sempre foram muito confiantes na nossa escolha. Desde pequena eu escuto: “Na tua cabeça tem um guia. Se você acredita que dá para fazer, vai e faz”. Minha mãe sempre dizia e diz até hoje. “Mas o que você acha, minha filha, você acha que isso vai dar certo?”. E eu sempre acho que vai dar certo. “Então faz”, ela diz. “Você tem mais coisas dentro de você do que consegue me dizer. Então, se acha que dá para fazer, faz”. Desde pequena era assim.

Você e sua família são muito próximas até hoje?
Debora –
Sim, mas somos muito autônomas. Meu pai faleceu em 2003. Minha mãe e minhas duas irmãs têm cada uma a sua vida, em cidades diferentes. Uma irmã é advogada e a outra, fisioterapeuta. Não fazemos o tipo meloso. Nós sabemos que para ter carinho e cuidado não é preciso estar fisicamente presente o tempo todo. Você pode cuidar e acariciar alguém, mesmo a distância. Nos encontramos sempre no Natal, em Santa Maria. Talvez seja isso que me dê facilidade para ir, mas para voltar também. Eu não tenho dificuldade para ir, mas também não tenho para voltar. Não me causa dor voltar para casa. Me causa felicidade: vou ficar em casa, vou dormir...

E você sabe que não está fugindo de nada...
Debora -
Até porque eu me levo para todo lugar, né? Eu não tenho como fugir. Eu estou junto comigo o tempo todo.

E quais são seus sonhos?
Debora –
Ser feliz. E é bem amplo isso, mas ao mesmo tempo é bem restrito. Não são grandes planos nem desejos. Eu vou fazendo coisas que me dão a sensação de estar viva, de estar feliz. Faço coisas que me dão a sensação de que ainda brilha o meu olho. Acho que quando eu olho para alguma coisa que eu sinto... hum, isso não faz meu olho brilhar... eu não fico. Posso estar ganhando o melhor salário do mundo, posso estar num lugar extremamente estável e confortável. Não é isso que me dá o grande prazer. É a sensação de estar viva. Acho que tem muita gente no mundo que não está viva. Está andando por aí, mas viva não está.

Como é estar viva?
Debora –
Eu preciso dessa sensação boa, sabe, de encontrar os humanos por aí. Mesmo com tanta falta de humanidade nesses espaços para onde vou. Mas humano é isso tudo: essa crueldade, mas também essa riqueza; essa maldade, mas também esse acolhimento do outro. Quando você não tem nada, mas você ainda tem espaço para acolher alguém dentro de você, é interessante, bem interessante. E aí você se dá conta de que o material não é nada. Nada. Tipo... um terremoto pode terminar com tudo isso daqui. E aí quando as pessoas dizem (ela imita a voz): “Mas como, você acabou de comprar seu apartamento e já vai abandonar?”. Eu comprei um apartamento, não comprei uma algema para botar no meu pé. Um apartamento é um lugar para onde você pode voltar quando quiser, ele não vai fugir. Um dia ele pode desaparecer num terremoto, num maremoto, qualquer coisa pode destruir ele. E se esta for a razão para eu viver, talvez eu nunca consiga me recuperar da tragédia dessa perda. Mas acho que, quando o ser humano quer uma razão para viver, ele encontra. Seja uma pedra... talvez uma pedra dê razão para você viver. Você diz: essa pedra aqui é mágica, você vai encontrar a sua sorte com ela. Pegue nessa pedra e atravesse esse rio. Ok. Talvez essa pedra seja uma razão para viver.

O que você vive transforma você o tempo inteiro, claro. Mas há alguma transformação mais concreta que você possa contar?
Debora –
Não sei... talvez tenha sido um encontro. Acho que agora é mais claro para mim. Eu acredito que você tem muitas coisas dentro de você, sempre. Todo mundo tem muita coisa dentro de si. Você só faz aquilo que cola. É como se fossem vários ímãs. O seu pólo só cola em coisas que você já tem. Se não, não colariam em você. Talvez com essas vivências tenham ficado mais evidentes em mim algumas coisas. Especialmente essa relação com o material. Nunca foi muito o meu forte dinheiro e coisas palpáveis. Mas agora faz menos sentido ainda. Bem menos. Eu lembro quando no Congo eu recebi as diárias, o dinheiro para sobreviver naquele lugar. E eu lembro que eu estava morrendo de fome, e era de tarde já, e não tinha nada para comer na casa. Lembro que eu perguntei: “Não tem nada aí para comer? Estou com muita fome”. E a moça disse: “Teve um ataque ontem, lá no mercado, e não sobrou nada. Não tem nada”. E você se dá conta do valor do dinheiro – um pedaço de papel que é significado puro. E, naquele dia, por exemplo, ele não significava nada. Eu não podia comprar nada com o meu dinheiro. Estava lá, com o dinheiro dentro do bolso e não tinha um grão de arroz para comprar porque não havia paz naquele lugar. E aí você começa a se dar conta de qual é o valor das coisas materiais. Você não come o seu dinheiro. Você não come o seu salário. Há outras coisas ali que têm uma importância e um significado muito maior e que não são coisas físicas. As coisas materiais te dão uma sensação de paz, mas é apenas uma sensação de paz, não é a paz. Não é a saúde, não é a riqueza. É uma sensação de tudo isso. Que pode ser destruída muito rapidamente. Talvez isso tenha ficado mais evidente para mim. Já tinha um significado, mas não tinha essa força que tem hoje.

O que mais você percebeu depois de viver no limite do humano?
Debora –
Tem me caído muitas fichas sobre beleza e estética. Em cada lugar que eu vou, a sensação de percepção da estética e da beleza é muito diferente. E me encanta, me encanta mesmo.

Fiquei curiosa para visualizar mamãe Marie. Como ela é?
Debora –
É uma mulher bem alta, magra, muito magra. Uma mulher que chama a atenção pelas cicatrizes no rosto. Ela é de uma tribo onde as mulheres fazem cortes muito bonitos no rosto quando ainda são jovens. A estética desse lugar é uma estética muito interessante. Nada a ver com a estética que a gente valoriza no mundo ocidental, mas uma estética muito forte, onde as marcas do rosto dizem de onde você vem e qual é a sua história. Como tatuagens. São cicatrizes que vão contando a história dessa mulher. Nesse lugar, as mulheres ou raspam o cabelo ou têm o cabelo muito comprido. Não existe o meio termo. Ou elas têm tranças enormes, que é um grande símbolo de beleza. Ou são mais velhas e têm o cabelo raspado, o que também é um símbolo de beleza.

E nos outros lugares onde você foi, como era vivida a questão da beleza? O que era o belo?
Debora –
Em Masisi (Congo), as pessoas têm os dentes bem separados. E elas serram para ficar mais separados. Isso, esteticamente, é muito bonito. Eu sempre pergunto: “O que é um homem muito bonito aqui? Uma mulher muito bonita?”. Eu sou muito perguntadeira. E eu me lembro de um dos psicólogos nativos me contando: “Ah, uma mulher bem bonita aqui é a minha mulher. A minha mulher é a coisa mais linda do mundo”. O nome dele era Dodô. “Ah, Dodô, e como é a sua mulher?” E ele a descreveu: “Minha mulher é bem alta, é bem gorda, ela tem os dentes bem separados, e ela tem umas tranças...” Na minha cabeça ocidental, eu fiz a imagem de uma mulher com seios grandes, bem magra, acinturada, com bunda, perna firme. E eu fui fazer uma seleção, e a mulher dele também era psicóloga e concorreu. Quando eu a vi, levei um susto. Então essa é a mulher linda dele! Era uma mulher muuuuuito grande, muuuito gorda, com os dentes muuuito separados. Uma mulher bem masculina, bem forte. Bem, mas bem gordona. Do tamanho desse sofá (de dois lugares). E eu pensei: “Essa então é a beleza”. E depois eu fui perguntando para outras pessoas no caminho o que era uma mulher bonita, quem era uma mulher para casar... Porque eles sempre diziam: “Essa é para casar, essa não é para casar”. Aí eles respondiam: “Como assim, você não sabe o que é uma mulher para casar?”. Porque quando você está dentro da sua cultura, você acha que todo mundo compartilha, né? Uma mulher para casar, naquele lugar, é uma mulher grande, forte, que consegue suportar o peso de dois bebês sobre o próprio corpo, que consegue capinar e preparar a horta e que ainda tem forças para, quando chegar em casa, arrumar as coisas. Só que eles estão falando isso não com uma conotação machista, mas com uma conotação de: “Como você não sabe? É assim”.

Você, pequena e magra, estava completamente fora do padrão de beleza local...
Debora –
Eu sempre estou completamente por fora dessa beleza. Eu sou o lado B da beleza desse lugar... (ri). Lembro que uma vez um homem de lá até falou: “Você é tão bonita, pena que seja muito magra. E os dentes, também, são muito juntinhos...” (ri muito) Eu fico pensando que uma pessoa que não se sente bem com sua aparência só precisa rodar o mundo. Você sempre vai encontrar alguém que procura exatamente você.... e nada mais do que você mesmo. Tem gosto, cultura e estrutura para tudo nesse mundo.

E a vivência da sexualidade também deve ser muito diferente, não?
Debora –
Eu lembro que uma das aulas é sobre sexualidade. Como se desenvolve a sua sexualidade? Como casar depois de ter sido estuprada? Como ter uma relação sexual com alguém depois de ter sido violentada? E eu lembro de uma pergunta que me marcou muito, de uma mulher de uns 45, 50 anos: “Mamãe Debora, como é fazer amor com alguém com carinho?”. Você imagina alguém que é casado há muito tempo e que não sabe o que é fazer amor com alguém, ter cuidado e ser cuidada?

E o que você respondeu?
Debora –
Eu expliquei um pouco como era no mundo ocidental, que nem todos os homens são carinhosos, nem todas as mulheres são carinhosas, mas que existem, sim, estruturas de carinho, que o carinho também é uma estratégia cultural. Mas que nem todas as culturas desenvolvem esse tipo de estratégia. Essa mulher então me disse: “Se eu mostrar para ele que estou sentindo prazer, vou ser considerada uma prostituta. Será que você pode falar com meu marido para dizer a ele que isso não é coisa de prostituta?”. Posso. Pode tudo num lugar desses. Todos os tipos de intervenção são possíveis. Existem, sim, várias consignas, mas não existe um padrão que tem de ser seguido. Cada pessoa é um mundo de necessidades e um outro mundo de possibilidades. E você tem de saber que tipo de necessidades tem esse mundo e como fazer essa ponte com o mundo das estratégias de cada um.

E você falou com o marido dela?
Debora –
Falei. Foi interessantíssimo, porque os homens não falam nesse lugar, né? Cabeça baixa... ainda mais com uma mulher. Imagina um homem negro, afro, subsaariano, falando para uma mulher sobre sua vida sexual. Não sei se por sorte ou azar, nesse lugar as mulheres brancas são consideradas assexuadas. Não somos nem homens, nem mulheres. Acho que isso facilitou bastante. E eu lembro que ele disse assim: “No mundo dos brancos funciona assim?”. Eu falei: “Não no mundo de todos os brancos, mas a gente não precisa dizer que tem um mundo de branco e um mundo de negro, mas que isso pode se constituir das duas formas. Inclusive, no mundo de onde eu venho existem homens brancos e homens negros. Eu não vivo num mundo só de brancos. Vivo num mundo onde existem, sim, muitas pessoas negras, e que algumas sentem prazer, outras não sentem. Mas que isso, sim, é possível. Você não precisa ser profissional do sexo para você sentir”. E eu me lembro das perguntas dela: “Mas eu faço como?”. Porque nesse lugar é muito diferente. Os prazeres são diferentes. A forma de sentir prazer é diferente.

E como é?
Debora
– Aqui você vai à farmácia para comprar um lubrificante para uma relação sexual. Lá é diferente. Você compra pílulas ou você usa ervas para estar ressecada na relação sexual. Então, normalmente, um presente de casamento é ou uma pílula, para você se ressecar, ou ervas para você secar sua vagina antes da relação sexual. Para que sua vagina esteja bem seca na hora de ter uma relação. Então você imagina a dor de um estupro, né? Porque a mulher obviamente já está ressecada.

E o prazer é por estar seca?
Debora –
Não da mulher, o prazer do homem. Quando eu pergunto para elas se sentem prazer, elas dizem: “Não, sinto dor”. É uma das razões de o número de casos de DSTs (doenças sexualmente transmissíveis) ser muito alto. Elas já têm muito mais fissuras, muito mais contato de sangue, muito mais contato de secreção. Você precisa então dar algumas dicas sem interferir diretamente em uma cultura, porque esse não é o meu trabalho, nem o trabalho de ninguém, o de desconstruir uma estrutura que está dada. Mas quando uma pessoa diz: “Essa estrutura não me dá prazer, essa estrutura me machuca, essa estrutura me fere, me causa sofrimento, bom, aí minha intervenção é possível”. E funcionou. Para essa pessoa, pelo menos, funcionou. Para esse casal.

Como você sabe que funcionou?
Debora -
Ela me disse. Bateu na janela do meu quarto e sussurrou: “Funcionou!”. (risos)

Como é para você esse contato com o mal humano? Esses homens que queimam, mutilam, estupram e matam sem sequer conhecer. Nem mesmo é pessoal. Como você lida com isso?
Debora –
Eu sempre acho que tudo tem uma razão, um significado. Por mais que a gente não entenda. Eu imagino que mesmo essas pessoas têm dentro da cabeça delas uma razão. Estou entrando no meu terceiro ano de MSF e ainda não consegui entender essa estrutura de maldade. Se me falarem: “Você precisa fazer um atendimento de uma pessoa do LRA”. Eu vou fazer. E vou tentar entender com ele o que está acontecendo e como se estrutura isso. Eu até brinquei uma vez com meu chefe. Eu falei: “Me deixa fazer o atendimento deles. Eu preciso entender o que está acontecendo”. Não consigo entender como alguém consegue fazer isso com uma menina de 11, 12, 13 anos. Ainda para mim é incompreensível. Mas eu gostaria de entender. Eu sempre acho que tem, sim, uma razão, que tem uma história atrás disso, e que talvez isso explique. Que não justifica, não justifica. Você pode me contar 100 mil histórias. Eu acho que isso explica, sim, mas não justifica. Mas... ok. O meu trabalho é este: atender as pessoas que ali chegam. Não importa de que lado que elas vêm, não importa que tipo de acontecimento se passa na vida delas ou se passou. O meu trabalho é aliviar o sofrimento humano, seja ele de onde venha, seja ele a cor que tenha. E dá para fazer isso. É a razão de eu continuar. Porque se eu achasse que não dava para diminuir o sofrimento, que não dava para ajudar as pessoas a escolherem novas estratégias de felicidade para a vida, talvez eu não estaria nesse lugar. De todos essas nove missões, eu não me lembro de alguém dizer: “Eu não encontrei uma razão para viver”. Muitas pessoas, principalmente no Haiti, diziam: “Eu não quero mais viver”. Na África, já é mais difícil você encontrar essa fala. Eles dizem: “Eu não tenho nenhuma razão para viver”. Mas estão lá, com aquele olhar do tipo: “Mas me ajuda a encontrar?”. Me ajuda a fazer a metamorfose desse sofrimento em vida mesmo, em felicidade? E às vezes a felicidade pode ser um grupo de dança, pode ser uma caminhada coletiva em algum lugar, pode ser um abraço... Como uma mulher de 70 anos me disse uma vez: “Nunca ninguém me abraçou”. Ela tinha sido estuprada e seu corpo era todo arqueado, enrijecido. Em cada lugar o estupro tem um significado diferente e, para aquela etnia, violentar uma mulher mais velha conferia poder ao estuprador. Então eu a abracei. O afeto pode, sim, fazer uma grande diferença. Eu não vou mudar o mundo, com toda certeza, mas eu posso mudar o mundo de uma pessoa durante algum tempo que pode ser uma hora, duas horas, 24 horas. Tá bom, sabe? Se todo mundo tiver uma hora, ao menos, de intensa felicidade, um sentimento bom de acolhimento, tá bom. É suficiente. Se em 70 anos ela nunca recebeu um abraço, por que eu não posso fazer uma grande diferença com um abraço, com um toque?

E como você lida, Debora, com a indiferença? Explico: você volta para o Brasil e muita gente não está nem aí, não é? A maioria das pessoas, de fato, não está nem aí para o sofrimento do outro. Se interessa apenas em cuidar da própria vida ou no máximo daqueles que considera sua família de sangue.
Debora
– Isso é bem difícil. Quando eu volto, as perguntas são sempre as mesmas. Mas as reações também são muito parecidas. As perguntas vêm do encantamento de alguém que escuta uma história de filme. O interesse termina quando termina a mesa de bar, ou quando termina a conversa na rua ou na praia. Isso me assusta um pouco, sabe? Até onde você se sente tocado para mudar uma história? Não estou dizendo que todo mundo precise fazer esse trabalho, nem que todo mundo precise ser muito militante, não é isso. Mas é uma sensação de que as pessoas se conformam com tão pouco, sabe? Muitas choram, até. Mas quando eu termino de contar é como se desligassem a TV. Ou saíssem da sala de cinema. A tristeza dura a emoção daquela cena. E é uma pena que eu não consiga fazer com que as pessoas sintam a dor daquelas pessoas naquele momento.

Parece que não há conexão, não é?
Debora –
Uma inquietação, pelo menos... Não quero que o mundo inteiro seja triste, não quero que o mundo inteiro fique mal, não é isso. Mas como tocar o lado A do mundo? Como tocar essas pessoas que estão dentro desse contexto estável, dentro de suas vidas tranquilas, de seu carro novo? Ok, como fazer com que essas pessoas pensem em uma forma de fazer do mundo um lugar um pouco diferente? Não quero que todas estejam na África ou que todas vão para o Haiti, mas acho que cada um pode fazer uma coisa muito pequena para poder mudar isso, sabe? Coisas bem pequenas, mesmo, que você pode ir mudando. Tipo: eu estou te contando que tem trabalho escravo nesse lugar. Ok, você pode não comprar um produto desse lugar. Ou estou te falando que nesse lugar existe determinado tipo de violência. O que você pode fazer com isso? Eu acho que você sempre consegue fazer alguma coisa. Dentro do nosso país, mesmo, tem muita coisa para ser feita e acho que a gente não faz porque essa tranqüilidade – ou essa acomodação com roupagem de tranquilidade – dá uma sensação de conforto para as pessoas.

E como você lida com isso?
Debora
– Isso ainda me inquieta. Essa roupa não é o meu número, sabe? Me dá um desconforto. Mas enquanto eu não sei o que fazer com isso, eu vou trabalhando com esse outro lado. Não dá pra fazer tudo ao mesmo tempo. Isso é o que eu consigo fazer nesse momento: contar essas histórias quando eu volto e apenas quando me perguntam, porque se não me perguntarem eu não digo nada. Não tenho essa vontade de dizer para todo mundo: “Sabe o que eu estou fazendo?”. Não tenho. Mas, se vierem me perguntar, estou sempre disposta a falar. Mesmo que às vezes seja repetitivo.

E isso não te dá uma solidão muito grande na volta?
Debora –
Acho que nas primeiras duas, três missões, eu me sentia um pouco solitária. Eu queria contar mais detalhes. Mas as pessoas querem ouvir até certo ponto. No ponto em que começa a tocar muito o sentimento, o sofrimento, a angústia, e que elas não conseguem traduzir isso em uma ação ou um significado mais concreto, elas começam a ficar desconfortáveis nessa escuta. Então nessas primeiras duas, três missões, era um pouco... como assim? As pessoas não querem ouvir mais? Mas hoje eu já compreendo. Ok, elas não escolheram esse mundo para elas, eu não tenho o direito de forçá-las a um mundo que não querem. Cada um tem a sua escolha. Inclusive, a escolha de dizer: “Eu quero viver nesse outro mundo”. E a alienação também traz felicidade. Você não saber de tudo, você não saber de uma série de penúrias e de desgraças do mundo também te traz um conforto e uma sensação de felicidade de.... Ok, tudo o que eu sei é que meu filho está bem alimentado, dormindo num bercinho bonito, que acabei de reformar o quarto dele com um arquiteto. Está tudo ótimo. Tipo, a alienação também é isso, também traz conforto. Mas eu não escolhi esse lado. Eu escolhi saber, eu escolhi ver.

Como é escolher ver?
Debora –
Rico, bem rico. É uma sensação de ter muita gente dentro de mim. Eu já sou muitas, né? Sou muitas mulheres e muitos homens também, sou muita gente. É uma sensação de... (permanece um pouco em silêncio) estar muito plena. Plena de história, de tudo. Plena...

Arquivo/MSF


Fábio         Rossi/MSF


Arquivo/MSF


(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)

terça-feira, 3 de maio de 2011

Minha loucura.

Minha pacífica confusão
Muda confissão, de alguém que muda
Ouço as cores e escrevo gritos
Faço pouco do status
E de seus companheiros aflitos
Seus dons ideais,
Suas roupas iguais
Idéias-fixas, sagradas e purulentas catedrais...
Prestando culto ao abismo!
Não! Prefiro ainda esse louco altruísmo
Privilégio de entes insanos
Insistentes samaritanos
A quem a morte não pôde secar...
... Nem cegar.

sábado, 16 de janeiro de 2010

O Haiti, lá e aqui...

Por que a vida tem que griatar pra chamar nossa atenção? Será que só somos sensiveis a grandes tragédias? Funcionamos aos gritos?

O Haiti já precisava de quase tudo,mesmo antes dessa calamidade. O que me espanta - e não estou apontando o dedo pra ninguem, é de mim mesmo que falo, antes de mais nada - é que uma tragedia dessas ainda precise piorar a situação de quem ja é miserável, pra que a gente consiga olhar pra eles.

Aí fica aquela pergunta que eu fiz: será que funcionamos aos gritos? Quão alto a vida tem que gritar? Isso me faz pensar que se a voz do Espirito é um sussuro suave, quem de nós a está realmente ouvindo? Será que, fazendo tanto barulho por ninharias, a ponto da vida ter que gritar dessa maneira pra nos despertar pro que realmente importa, estamos prontos a ouvir o vento do Espírito?

Doações são necessarias, pelo menos não sejamos surdos a esse berro desesperado que nos tira do nosso sono cotidiano. Levanta ó tu que dormes, as pedras estão literalmente clamando!!! As pedras, o mar, as calçadas...

O Haiti precisa de dignidade, assim como precisam milhares que ainda morrem de fome, sem nem precisar de um terremoto. Triste né? Espero conseguir me manter acordado, nesse mundo que nos induz ao sono da indiferença, que é puro fluxo de morte.


Otto

Curitiba - PR

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Feliz 2010!!!

Que o ano novo nos traga sempre a paz que esse mundo não dá, o amor que
transborda todas as medidas e a alegria que é a nossa força. Por que as misericordias estão renovadas, amanheceu!!!

Que possamos perceber os carinhos de Deus, os cuidados do Pai como
Graça e Amor incondicional e infinito, e que isso nos encha de gratidão.

Sim, pois a gratidão ajusta nosso olhar pra perceber que o que é bom,
que as dádivas que vem das mãos do nosso Pai, não tem preço, e não são pra comparar com qualquer tribulação!

Ajustar o olhar é tão importante, que o Mestre chega a afirmar: Cuida pra que teus olhos sejam bons, e teu corpo será luminoso.

Nosso olhar é um filtro de tudo o que deixamos entrar, e focá-lo no Amor do Pai, é a unica maneira de nos mantermos limpos!!!

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O Olhar

É engraçado como muito do que chamamos de problemas nasce em nossos próprios olhos. Explico: Nosso olhar, nossa atitude diante das coisas, determina nossa interpretação dos fatos e, em seguida, nossa resposta a eles.

Se os olhos forem bons, boa parte do que seria diagnosticado como problema vira simplesmente fato da vida, coisa corriqueira, e deixa de vir pra dentro como um problema, como peso e treva.

Jesus relacionou a qualidade do olhar – um olhar bom – ao corpo cheio de luz. E a Luz, além de nos permitir ver as coisas de forma mais clara, não pesa.

O olhar ruim gera toda sorte de processos mentais adoecidos e reações de compensação e neuroses, além de não nos permitir usufruir da vida de maneira mais alegre e completa. Traz muito sofrimento desnecessário pra nós e pra quem está a nossa volta.

Cuide pra que teu olhar seja bom, e a vida ficará incomensuravelmente mais leve!

Otto

Curitiba - Paraná

terça-feira, 7 de julho de 2009

Criação, criatividade e seres cria(ca)tivos. A criação em cativeiro e os cativeiros dos seres na sua propria criação.

Nas parábolas de Jesus encontramos as mais diferentes figuras.

Há homens bons, homens maus, religiosos, não-religiosos, gente humilde e gente soberba. 

Gente que perdoa, gente que cobra com juros e gente que é perdoada. 

Há pais, há filhos, há irmãos, há família. Enfim, há o mundo todo, eu, você e Ele. Ele sempre!. 

Há também a criação servindo-nos de exemplo, e isso há em abundancia no ensino de Jesus: sementes, solo, árvores e animais que nos dão lições de como a vida é e de como a vida deve ser. 

É nesse sentido que Paulo também nos diz algo valioso: Deus se manifesta pela obra de suas mãos, por meio das coisas criadas. 

Isso ficaria obvio pra nós, como era pra Paulo - que ouvia os gemidos da criação, clamando por ser redimida - se tão somente parássemos um pouco pra contemplar a Deus em tudo o que Ele criou. 

Só que a gente não para! 

Não para pra ver, pra ouvir, pra sentir...

Não vê as aves, não olha as flores, não descansa mais sob a sombra das árvores, e seus frutos, a grande maioria de nós – homens urbanos – só vê mesmo nas gôndolas dos supermercados.Já nem mais os percebemos como frutos, apenas como produtos que a gente consome na correria do dia-a-dia.

Encaixotamos a criação! 

E pior, tendemos a tentar fazer o mesmo com seu Criador, que virou até "capitalista" aos olhos da grande maioria dos cristãos. (?!?!) 

Esse "deus" do capital, ao qual serve-se sem perceber - ou pior, há muitos o servindo de forma deliberada - Jesus jamais chamaria de Pai, alias chamou mesmo por um nome: Mamon. 

O Pai de Jesus é outro! 

O Pai de Jesus não pode ser contido por nada! 

Não se vende e não vende coisa alguma, mas dá a todos em abundancia. Manda a chuva sobre as cabeças de todos os homens: justos e injustos. Faz o sol brilhar pra todos debaixo dele e Dele! 

O Pai de Jesus é criativo e generoso! 

Qual de nossas pinturas contemplaria os muitos matizes de uma floresta, ainda que retratando tal paisagem? 

O que, em toda a nossa arquitetura se compararia a uma simples árvore, que serve de casa à pássaros e muitos outros seres? 

Arvores, montanhas, campinas e ribeiros nunca saem de moda, a criação de Deus não sofre desse surto! Pois o próprio Deus que nela se dá a conhecer é isento de quaisquer modismos, Ele é eterno! 

O Eu-Sou, embora possa dar-se a conhecer num mundo de múltiplas cores e formas e em constante movimento e mutação, Ele mesmo, não muda, não varia...e não surta!

A gente é que surta, o tempo todo! Vivemos correndo atrás do vento ao invés de senti-lo. Corremos, corremos e corremos - inventamos até formas aerodinâmicas pra corrermos ainda mais e inclusive contra o vento. 

E quem o escuta? O vento do Espírito-que-sopra-como-o-vento? Quem se arrisca a planar em suas correntes?  

O homem gosta mesmo é de vidro, de plástico e de aço e tudo o mais que o espelhe - onde a criação é apenas, e quando muito, "paisagismo". Narciso é sua imagem perfeita, e nele esquece-se de tudo o que não seja reflexo do si-mesmo. 

Somos seres pedrados - ou seria melhor dizer de plástico, atualizando a metáfora para os nossos dias? 

Já que nossos ídolos também já não são mais de pedra, nem de bronze ou ouro....Não! Não fazemos mais bezerros, preferimos os cavalinhos, desde que num símbolo, no capô de uma Ferrari.  

E o ouro virou silício, plasma, cristal liquido...

Exagero??? Será?!

Pode ser...mas pare pra pensar: a que você dedica seu tempo e seus mais intensos esforços e desejos? Como usa a maior parte do seu tempo e recursos? 

Até corpos, hoje, viram esculturas de silicone vendidas de muitas maneiras no nosso mercado-global (seja esse mercado real ou virtual).  

Seria eu um hipócrita maluco, falando de ídolos de silício, sentado frente a um computador, escrevendo esse texto - e o que é pior - num blog?! 

Não, não! De jeito nenhum! Longe de mim demonizar qualquer coisa! Coisas não têm tal poder, a não ser que a gente empreste a elas! 

A pergunta que importa fazer não é nova, mas continua sempre pertinente: Quem é que serve a que ou a quem?  

Teria sido aquele tal bezerro de ouro, chamado de ídolo, não fosse ele adorado como a um deus? 

Obviamente que não!

Ora, era apenas uma estátua! Perdia feio, em poder de sedução, pra toda a parafernália atual! Não contava com as "magias" da propaganda e nem dispunha de seu próprio mundo virtual, repleto de fantasias e projeções psíquicas. 

Seu poder atrativo vinha apenas do deserto! Não do deserto físico, nas areias do qual foi talhado, mas do deserto de alma dos homens e mulheres que o adoraram! 

E de almas desertas e sedentas o mundo continua cheio! Frente a tudo o que se vê e ao que foi aqui exposto, dá pra negar?!  

Por favor, pense nisso! 

Jesus nunca teve seu foco nas coisas, e nem fez parábolas sobre elas!




Otto


Perdizes - São Paulo

domingo, 28 de junho de 2009

Liberdade No Caminho

Há muito não sentia vontade de escrever. Hoje porem, às 3:20 da manhã, cá estou. Tenho andado às voltas com os emaranhados da minha alma, coisas íntimas e longínquas, duras de se lembrar e dolorosas quando nelas se toca, porém chaves de liberdade. Tenho andado ocupado com significados e re-significados, re-interpretações, re-memórias, de coisas congeladas, deixadas pra lá, das quais fugi e me afastei, mas que guardam imenso potencial de vida, pois carregam verdade em si. A verdade nunca é substituída pelo engano sem prejuízo, ainda que a desculpa seja a de tomar um atalho ou evitar a dor. Disso meu ser dá testemunho.

Conhecerás a verdade, e ela vos libertará, assim nos ensinou Aquele que é boa nova em tudo, restauração, re-significado e redenção. Pois bem, é nesse espírito que re-interpreto os fatos e os re-organizo. É nesse espírito que ganho forças pra olhar sinceramente pra dentro. E, sobretudo, é assim que conheço o Amor d’Ele como liberdade que alivia os fardos e pacifica o ser. Graça é o que nos ampara, não o que nos torna medrosos, é o que nos revela, não o que nos torna cegos. É pela Graça, e só por ela que posso olhar pra dentro, discernir quem sou e ainda assim ter paz com Deus. “Graça” que produz auto-engano é desgraça pura e não tem parte Naquele que diz de si mesmo: “Sou a verdade e a vida”.

Meu ser não veste terno, e sim farrapos...mas...mesmo rasgado, estou limpo. Mesmo desconexo, descontinuo e ambíguo tenho paz para, com agulha, linha e paciência, re-costurar as minhas entranhas. Fui lavado, sou amado - mesmo rasgado - o amor jamais ligou pra tais coisas. Sem ansiedade, vou caminhando No Caminho, e No Caminho sou curado, de glória em glória, de tropeço em tropeço, e de perdão em perdão. À minha frente, vejo O Alvo, e percebê-Lo é o que me basta, ainda que não veja mais nada além d’Ele.



Otto

Perdizes - São Paulo

sábado, 14 de fevereiro de 2009

O Escândalo da Cruz!

A Graça quebra as leis naturais de causa e efeito!

Sim, é isso mesmo, isso ocorre na Cruz que opera a salvação do homem a partir da livre iniciativa do Amor soberano de Deus e, como não podia deixar de ser, no ensino de Jesus.

Suas demandas de amor e perdão para com o próximo também anulam totalmente nossa lógica casuística, uma vez que nos fazem agir não de acordo com os insultos ou agressões que nos são dirigidos por outros, mas sim de acordo com a Graça que nos é dispensada pelo Amor do Pai, do qual todos somos alvos ininterruptamente!

Quem pode respirar, comer, beber e, conhecendo a Deus, negar o que eu disse no parágrafo anterior?

Jó nos ensina que um simples recolher de hálito divino já seria suficiente pra que toda a criação não mais existisse.

A vida então, é pura Graça, quem poderia fazer o quê pra pagar por ela?

Isso pra falar só do tempo...

E a eternidade?

A Graça acaba com qualquer presunção de barganha do homem com Deus, umas vez que Deus é livre e é Amor, e por isso é que vivemos.

Despidos de qualquer forma de auto-justificação, saibamos: mesmo a fé é dom de Deus, então, o que nos resta em nossa pretensão?

O justo, viveu, vive e viverá pela fé!

Aceitemos então o escândalo da Cruz!

Que é escândalo de nossas regras, dos princípios elementares da nossa ciência, que contradiz nossa lei de ação e reação e mostra que quando se fala de relacionamentos e santidade é esse escândalo da Cruz o que deve valer.

E então, nesse Caminho – Jesus – conheceremos verdadeira Vida e a Verdade nos libertará a cada amanhecer.

Vivemos pela Graça, todos nós!

Só abrindo mão da justiça própria, e nos sabendo pecadores, seremos justificados em verdade, pelo Único que é justo e que tira o pecado do mundo!




Otto, servo inútil!

Perdizes - São Paulo

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Simplicidade

Simplicidade, que essa seja a palavra de ordem!

Simplicidade que desconstroi arrogâncias, que cura neuroses, que anda em paz.

Simplicidade de olhos bons, de menos barulho e mais silencio.

Silencio da boca e atenção dos ouvidos.

Silencio da alma, que abre o coração.

Piegas?

Filosófico?

Romântico?

Não. Um projeto de ser, de viver!



Otto

Perdizer - São Paulo

sábado, 3 de janeiro de 2009

2009 e eternamente!

Sabe o que eu quero da vida? Quero encontros, casuais ou não, o importante é que sejam encontros, com gente sincera e de carne e osso – de plástico, as prateleiras já estão cheias! Quero coragem o suficiente pra me deixar envolver por um sonho, ou por muitos deles, quem sabe, e caminhar em sua direção com passos bem reais. Quero alguém que se disponha a mergulhar de cabeça no meu mundo, mas que também me permita fazer o mesmo no seu.

Quero rir sim, mas não como alienação, não o riso dos tolos, mas o riso dos que sorriem por gratidão. Quero ser útil, mas não utilitário. Quero ser provocador, gerar reflexões, em mim e no mundo. Quero a paz que não é a antítese da guerra, mas que pelo contrario, transborda do coração mesmo em meio às lutas. Quero chorar quando o choro for a atitude natural, deixando que as lagrimas me lembrem do que realmente importa. Não quero fugir da dor, nem busca-la tampouco, somente aprender com ela.

Quero saber olhar pra fora, pr'além do meu umbigo. Quero honestidade, pra que não me torne hipócrita e esperança pra não sucumbir ao cinismo. Quero força pra andar na contramão, de peito aberto, e também uma boa dose de loucura. Quero tornar-me surdo pra todas as falácias desse mundo de muitas vozes dissonantes e futilidades barulhentas. Quero ouvir a voz da Eternidade!




Otto

Perdizes - São Paulo

sábado, 27 de dezembro de 2008

Drive

(Incubus)

Sometimes
I feel the fear of uncertainty stinging clear
And I can't help but ask myself how much
I'll let the fear take the wheel and steer.
It's driven me before, and it seems to have a vague,
Haunting mass appeal.
But lately I'm beginning to find that
I should be the one behind the wheel.

Whatever tomorrow brings I'll be there
With open arms and open eyes, yeah.
Whatever tomorrow brings I'll be there,
I'll be there.

So if I decide to waiver my chance
To be one of the hive
Will I choose water over wine
And hold my own and drive? oh oh oh oooh.
It's driven me before
And it seems to be the way
That everyone else gets around.
But lately I'm beginning to find that
When I drive myself my light is found.

Whatever tomorrow brings I'll be there
With open arms and open eyes, yeah.
Whatever tomorrow brings I'll be there,
I'll be there...

Would you choose water over wine....
Hold the wheel and drive.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Aos meus amigos!

" Uma maneira muito importante de ultrapassar a nossa tristeza é retirá-la do seu isolamento e partilhá-la com alguém que a possa compreender. Muitas das nossas dores ficam por revelar - mesmo aos nossos amigos mais íntimos. Quando nos sentirmos sós, vamos ter com alguém em quem confiamos e digamos-lhe: "Sinto-me só, preciso do seu apoio e companhia". Quando nos sentirmos ansiosos, emocionalmente carentes, indignados ou aborrecidos, tenhamos a coragem de pedir a um amigo que fique conosco e compreenda as nossas penas. Com demasiada freqüência pensamos ou dizemos: "Não quero aborrecer os meus amigos com os meus problemas. Eles já têm problemas de sobra". Mas a verdade é que damos uma honra aos nossos amigos ao partilhar as nossas lutas com eles. Não somos nós os primeiros a dizer aos amigos que nos tenham escondido os seus sentimentos e vergonhas: "Por que não me disse, por que é que conservou esse segredo durante tanto tempo?". Obviamente, nem todos podem entender as nossas penas secretas. Mas acredito que, se realmente quisermos crescer em maturidade espiritual, Deus nos enviará os amigos de que necessitamos. Muitos dos nossos sofrimentos derivam não tanto da nossa condição de dor, mas do nosso sentimento de solidão no meio do sofrimento. Muitas pessoas que sofrem de dependência - quer seja do álcool, quer seja das drogas, do sexo ou da comida - encontram o primeiro alívio quando são capazes de partilhar o seu sofrimento com outros e descobrem que realmente são escutadas. Os muitos programas de "doze passos", por exemplo, o aplicado nos Alcóolicos Anônimos, são um poderoso testemunho da verdade segundo a qual o partilhar os nossos sofrimentos é o começo da cura. Aí se pode constatar a relação íntima que pode haver entre tristeza e alegria. Quando descubro que já não estou sozinho em minha luta e quando começo a experimentar uma nova "solidariedade na fraqueza", então a verdadeira alegria pode jorrar precisamente no meio da minha tristeza. Mas não é fácil sair do isolamento. De algum forma e por algumas razões, queremos sempre resolver os nossos problemas por nós mesmos. Mas Deus nos colocou uns ao lado dos outros para construir uma comunidade de amor recíproco na qual é possível descobrir em grupo que a alegria não é só para os outros, mas também para nós. "

Henry Nouwen

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

O cavalo e o Cordeiro.

Ainda não atingi os objetivos preconizados por nossa cultura. Não me formei em absolutamente nada, não sou doutor, nem mestre em coisa alguma, nem sequer bacharel eu sou - não tenho diplomas. Não sou popular, não tenho status, dinheiro e nem poder e não sou influente. Pouca gente sabe que existo, e mesmo esses, que tem notícia da minha existência, em sua maioria não se importam. Não tenho também muitos amigos, mas os que tenho são bons. Já li um bocado de livros, mas nunca publiquei nenhum...

No entanto, tenho a benção de um olhar diferente, fruto de sofrimentos agudos e questionamentos profundos, que existem em mim desde a mais tenra infância. Ao contrário do que julgam alguns, não sou arrogante. Tenho um coração aberto pra alegrar-me com os que se alegram e partilhar o pranto dos que choram. Sou sensível ao choro, pois muitas vezes já chorei sozinho, sem ninguém que me enxugasse as lágrimas e conheço bem seu gosto salgado. Conheci também a doçura, de "anjos" que não me deixaram amargar, que até me mimaram bastante durante um certo período da vida: meus avós - que sempre foram mais do que pais.

Conheci o pânico como síndrome e a depressão como companheira de jornada que, fiel, raramente se ausentou durante o curso de meus anos de adolescência, e até em parte de minha infância. Conheci a solidão - e o sentir-me só - praticamente desde que tornei-me consciente de mim mesmo, e toda a dor que acompanha o sentimento de uma profunda inadequação aos padrões do mundo. Empenhei-me em procurar respostas e virei profissional na arte de mergulhos singulares, em apnéia, mergulhei nos livros e pra dentro de mim mesmo, não raras vezes, em atitudes suicidas, que, de quando em vez, materializavam-se também no mundo externo. Faltou-me fôlego em muitas ocasiões.

Conheci a Deus, primeiro como um vaga saudade, que não se sabe ao certo de que, ou de quem, e que como toda saudade, traz consigo angústia e inquietude pra alma. Conheci a Deus como objeto de busca, como alguém de quem, como Jó, eu ouvira apenas falar. Conhecia-o, na melhor das hipóteses, tão somente como se conhece, por alguma fotografia, um lugar em que nunca se esteve. Experimentei o que julgava ser sua ausência, já que eu por muito tempo não o percebi, e chguei ao ponto de confessar-me ateu. Que angustia vivi nesses tempos, por desejar intimamente Aquele ao qual, paradoxalmente, eu negava, negando assim a própria esperança.

Mas um dia, a exemplo de um homem de Tarso - que eu alias costumava criticar, tendo por base a obra de Nietzsche - ironicamente ouvi também a Voz e vi também a Luz, e assim, momentaneamente cego por sua intensidade, caí também do cavalo. Um cavalo grande, garboso, altivo, mas também assustado e fugitivo, que cortava à galope os campos em direção aos becos escuros, meu animal de estimação à época: Prepotência, era esse o seu nome.

Então, já sem meu cavalo, tendo que andar a pé e bastante confuso, tive a dimensão de minha pequenez, e por outro lado, me soube infinitamente amado. Perdi o cavalo, mas ganhei o Cordeiro, que me amou, e foi imolado em meu favor. Desde então, em sua mansidão e leveza, Ele tem me ensinado, a cada dia, a caminhar novamente, sujando os pés no chão poeirento da vida, em comunhão e humildade, na companhia de amigos-irmãos, pelo caminho eterno que só Ele é, e que nos leva de volta pra casa.

Otto

Perdizer - São Paulo

sábado, 17 de maio de 2008

A falta

Tem faltado poesia por aqui! A vida tem sido um pouco chata na verdade, mas escrevo mesmo assim. Tantas coisas que eu gostaria que fossem, na verdade, não são, não aconteceram, não acontecem, não existem - a não ser na minha cabeça...

Isso tudo dá à vida um tom de espera, só que a vida não espera, ela passa, quem espera sou eu, e acho que a vida não liga. E será que algém liga?

O que será que eu espero? Às vezes, confesso, nem eu sei direito. Espero que tudo seja mais...mais o quê? Penso as coisas de maneira tão intensa, que me decepciono com a realidade, será que não sei olhar pra ela? Ou sou viciado no impossível? Talvez eu interfira muito pouco no processo e isso é que me deixe frustrado. Não sei a resposta! E parece que sei cada vez menos, mesmo que sempre aprenda mais...

Hoje, não tenho motivos especiais pra escrever: nenhum fato novo, nenhum sentimento sublime, nenhum motivo nobre, nenhuma realização. Nada, em fim, do que me faz falta. Talvez a falta, sim a falta, de algo que eu nem sei bem o que é...


Otto

Curitiba - Paraná

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Cansado (de desamor)

Estou cansado de religião
E mais ainda de religiosos
De um sacro não divino
Sagrado-tradicional
De caixas de tijolos
Que chamam “casas de Deus”
De legalismos-sem-Graça
De ufanismos, proselitismos e triunfalismos.
E de toda essa des-Graça
Estou farto de gente fugitiva
Que enche refúgios dominicais
E que tem medo do próximo
Que tem medo de Deus
Narcisistas santarrões
Que pensam ser pecado
Ir além do próprio umbigo
Viver é pecado pra eles
Acham feio e sujo tudo o que não os espelha
E espelhos já não os servem de nada
Pois estão cegos e guiando outros
Estou farto de tudo o que não aproveita.
De tudo o que é desamor.



Otto

Curitiba - Paraná

terça-feira, 4 de março de 2008

Complicado

Complicados somos nós,
Complicados somos eu e você,
Complicados são todos os que nos rodeiam
Complicados, não estamos sós
Complicado é o que se vê
Complicados sentires que nos permeiam


Otto

Curitiba - Paraná

De olhos abertos

Não tenho o controle das coisas
Mas as coisas não me controlam também
E nem só por que não tenho asas,
Me impeço de voar sempre além

Não é absurdo pensar o que penso
Mais absurdo seria perder esse senso
De que o sonho que se realiza
Traz também consigo uma brisa
Que acalma o que fora tormento

Novos problemas estão sempre à mesa
Mas não tomarão consigo a beleza
Que conserva-me os olhos abertos
E não há nada, por certo
Que mantenha em mim a tristeza

Sei que não sou infálível
Mas posso contemplar o impossível
Pelo simples fato de ser eu um rebento
D'Aquele que está sempre atento
Ainda que seja invisível...


Otto

Curitba - Paraná

Imaginário

I nfinito
M eu mundo
A lma minha
G racejo
I rrestrito
N ascendo
A fllito
R efestelado
I nquieto
O rdinário

Gratidão

Descobri que o mundo poderia não se limitar ao caos sem muitos propósitos que eu costumava contemplar. Descobri que a fonte da minha confusão, que os paradoxos internos e as batalhas interiores, poderiam sim, dispor de algumas respostas objetivas. Descobri um amor que transforma a miséria em fortuna, uma vez que ampara e consola. E mesmo quando permite-nos passar por situações dolorosas, na verdade o faz com o único propósito de tornar-nos mais belos. Como um escultor, que desbasta a pedra para revelar formas majestosas, escondidas no interior da rocha. Deus nos molda a transforma por meio de sua infinita graça. Que privilégio, sermos tocados e esculpidos pelas mãos do maior de todos os reis, sentirmos em nós o toque do Altíssimo, que embora já nos tenha criado a sua imagem e semelhança, nos aperfeiçoa a cada obstáculo, ensinando-nos a ser cada vez mais como Ele. O maior dos professores, o que nunca desiste, pois conhece nossos corações e enxerga potenciais onde muitas vezes, o mundo só vê revezes. Minha gratidão às mãos que me levantaram, e que me guiam e livram-me do mau. Minha adoração e minha vida eu dedico ao Senhor dos Exércitos, ao Deus forte que tudo pode e conhece, e que me fez exatamente como sou, pois tem um propósito inclusive nisso. Mesmo que eu não veja ainda, rendo glórias ao Seu nome para sempre. Meu pai de amor, que me fez enxergar um mundo com cores belas e exuberantes, e muitos irmãos dedicados a sua obra, por meio desse mesmo amor! Nunca será suficiente agradecer, mas mesmo assim eu o farei, para o resto dos meus dias.....



Otto

Niterói - Rio de Janeiro